sábado, 14 de janeiro de 2012

Caro Thierry Sabine:

Caro Thierry Sabine:

Calha este dia ser o penúltimo do rali que você imaginou há mais de trinta anos. Se você ainda andasse por cá, teria visto o quanto é que mudou e se reinventou para poder manter a aura que você construiu enquanto andou por aqui: já saiu de Paris, já saiu de África. O Dakar é mais uma palavra que toda a gente identifica como "desafio", "perigo", "esforço" e "recompensa". Mas já não se corre em África, está na América do Sul, mais pacifico de se correr do que bandos de tuaregues ou muçulmanos extremistas, que para darem nas vistas não se importam de matar uns quantos ocidentais. Aliás, foi por causa disso que mataram quatro franceses na Mauritânia e cancelaram a edição de 2008, que iria partir de... Lisboa.

Eis uma pergunta que gostaria de fazer a si, caso estivesse vivo: você seria inflexível em relação ao local de partida e de chegada, ou queria pura e simplesmente correr no deserto do Sahara? Eu sei que teve uma experiência de "quase morte" no deserto, quando se perdeu, em 1977. E que foi por causa disso que viu o seu poder e decidiu criar este rali. E que naquele dia de Natal de 1978, quando viu mais de 80 carros, 90 motos e uma dúzia de camiões, você disse que o risco de morte era real.

Depois de você ter desaparecido naquele acidente de helicóptero no Niger, muito mudou. Primeiro o local de partida foi mudado: Córdoba, Madrid, Lisboa... um dia, em 2008, mataram quatro franceses na Mauritânia e o governo francês decidiu pressionar a ASO para cancelar o Dakar, na véspera da sua partida. Se você andasse por lá, era capaz de evitar que isso acontecesse? Aliás, você era a pessoa que conseguia tudo: desbloquear burocracias, falar com governantes, patrocinadores, imprensa... parecia que conseguia tudo, nada lhe era impossível de resolver. Um dia, nesse ano de 2008, a politica levou a melhor e foi cancelado. E é por isso que andam a rolar em sítios tão estranhos como o Deserto do Atacama. 

Sim, hoje, as coisas estão "caramelizadas", no sentido de não há perigo de se perder no deserto, como havia nesses tempos. É certo que o risco de morte está lá, especialmente entre os motards, mas ver perder alguém no deserto do Atacama é uma inverosimilhança tão grande como ver dragões de Komodo nas Ilhas Galápagos. Claro, há iguanas, mas não é a mesma coisa. É isso onde quero chegar: o Dakar conseguiu viver depois de você, mas perdeu um pouco da aura. Não para em Dakar, para este ano em Lima, a capital do Peru, e pelo que me contam, vai acabar em Santiago do Chile no ano que vêm. Qualquer dia, caro Thierry, ainda vou ver o Dakar a acabar em Las Vegas. Era isso que tinha em mente quando o criou? Duvido, e não sei se seria capaz de o ver noutro continente. Fazer um rali diferente, sim, mas não o Dakar.

Pessoalmente, fico com a sensação de que usar o nome "Dakar" mais parece ser um engodo para atrair trouxas, provavelmente os mesmos que ainda acreditam que o Dakar voltará alguma vez a África. Acho que deverá voltar, mas não deverá ser nos meus tempos. Enquanto existir confusão naquela parte do Norte de África, não deverão voltar para lá. E depois, fico com a sensação que os organizadores fartaram-se daquilo. Não sei se concorda com a minha ideia, mas é assim que vejo.

Caro Thierry, se for daqueles que acha que o essencial era ter um "rally-raid" que fosse fiel à frase que disse certo dia, de que "era um desafio aos que partem, um sonho para os ficam", pois digo de uma certa forma que o objetivo está a ser cumprido, pois apesar das equipas de fábrica, ainda continuam a vir os amadores e os loucos para fazer este rali. E se calhar, de onde você estiver, até deve estar feliz por saber que nesse aspecto, a essência está lá, independentemente do continente. Pois enquanto existirem os aventureiros e os loucos a quererem fazer parte deste "rally-raid" absolutamente esgotante, você já ganhou a eternidade. 

Não o incomodo mais no sitio onde está. Certamente deve estar a ver o que se passa por estas bandas. E provavelmente contente por ver que a prova continua, dê por onde der, noutro continente. Abraços e até um destes dias, algures nesse grande universo desconhecido, tão misterioso como o deserto que aprendeu a a gostar e a respeitar, e que quis que um dia repousassem as suas cinzas. Conseguiu isso tudo. 

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