quarta-feira, 21 de março de 2012

Caro Ayrton

Caro Ayrton:

Hoje, toda a gente se lembra de ti por ser aquilo que deveria ter sido o teu 52º aniversário natalício. Ainda bem, é um sinal de que nunca te esqueceram, que no Brasil, quer no resto do mundo. Mas há um motivo para isso: é que foi realizado um documentário sobre ti e foi um sucesso excepcional, um dos mais vistos de sempre na sua categoria, embora com o defeito de ter sido apenas ficado nos teus anos na Formula 1 e especialmente no teu duelo com Alain Prost, o que acho um pouco redutor, mas nada que menorize o bom trabalho. Apenas acho que poderia ter sido melhor se fosse mais completo. Mas meter a tua vida e a tua rica carreira num filme de duas horas é um exercício difícil.

Confesso que sempre que vejo os videos das tuas corridas, e se tivesse jeito para isso, fazia uma montagem  das tuas voltas canhão e punha como banda sonora o "My Hero", dos Foo Fighters. Como não sabes o que isso significa, direi que é uma musica de 1996, que virou um clássico. 

Uma parte da letra diz isto:

"Too alarming now to talk about 
take your pictures down and shake it out 
truth or consequence, say it aloud 
use that evidence race it around 

There goes my hero 
watch him as he goes 
there goes my hero 
he's ordinary"

É por isso que muitas vezes sinto uma revolta interior, dentro de mim, ao ver as pessoas te elevarem à condição de "Deus". Eu, que a cada dia que passa me convenço que isso não é mais uma invenção nossa para justificar um desconhecido superior a nós - eu sei que tu acreditavas nisso, e respeito os que acreditam - acho que elevar-te à condição de perfeição é uma ridicularia. Porque isso faz eliminar os teus defeitos e eleva as tuas qualidades a um nível quase irracional. Eras um grande piloto de qualificação, sem dúvida. Eras um "racer", mas hoje em dia, acho que o piloto completo é aquele que tem cabeça em corrida para atacar quando é necessário, e não atacar da primeira à última volta. Nesse aspecto, acho que o melhor era o teu rival, Alain Prost.

Sim, cresci a ver-te, e sabia o que tu eras. O meu herói. O herói de uma geração. Mas não eras Deus, eras apenas um mero mortal, um tipo genial que fazia uma volta-canhão nos treinos, aquele tipo que sempre que te via na pista, em qualquer qualificação, sabia que irias acabar com o primeiro lugar. Eras sobre-humano nesse aspecto, e ver-te no topo da tabela de tempos era quase uma inevitabilidade tão grande como julgava que tudo à minha volta era imutável, nos meus tempos de infância. Agora sabemos que não era.

Hoje em dia, muitas vezes penso se as pessoas bloquearam-te na tua mente por causa daquele trauma que foi a corrida de Imola. Dos que de endeusam, quantos se lembram da tua atitude vingativa em Suzuka, em 1990? Do facto de muitos de nós, da nossa geração, terem acordado às quatro da manhã, como eu, para te verem bater em Alain Prost na primeira curva, e saires de lá incólume e sem arrependimentos pela tua atitude? E se estivesses vivo em Adelaide, quatro anos depois, e estivesses no papel de Damon Hill quando Michael Schumacher o colidiu naquela curva? Como reagirias? Seria um caso de "cá se fazem, cá se pagam?", Inconscientemente, tornaste-te num modelo para muita gente, para o bem e para o mal.

Gosto de rever o passado, mas não de viver por lá. A vida continua e nós crescemos e envelhecemos. Hoje em dia, o teu sobrinho está na Formula 1, ainda por cima na Williams. Uma equipa que é a sombra do seu glorioso passado, mas que quer sair dela o mais depressa possivel. O carro promete, e espera-se que o teu Bruno o aproveite. Mas tenho medo de que ele ceda à pressão de um povo que vive mal com a ideia de que quer ver a Formula 1 porque "quer ver um brasileiro vencendo". Sem querer, habituaste mal os brasileiros, julgando que o automobilismo é como o futebol, que é o seu quintal, e se não vencem, entram em depressão. O ufanismo quase irracional que chega ao nivel da expressão "Deus é brasileiro" por vezes irrita-me, porque causa uma pressão quase incomportável nas pessoas. É um destruidor de carreiras e não deveria ser isso.

Perdoa o meu desabafo. Não devia falar contigo dessa maneira, porque não tens culpa da maior parte das coisas que acontecem por cá. Apenas fizeste o teu melhor e foste recompensado por isso. Nesse aspecto, não precisaste de ter uma vida longa, apenas uma vida boa. E nunca serás esquecido por isso. Só que gostava que as pessoas soubessem que tu não foste mais do que um ser humano, que teve um principio e um fim, e foste muito feliz na profissão que escolheste. Só isso.

Feliz Aniversário. Onde quer que estejas, desejo-te uma boa vida.

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