quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Nos 80 anos de "Nicha" Cabral (parte dois)

Hoje neste especial sobre os 80 anos de Mário de Araújo Cabral, o famoso "Nicha", falo sobre aquilo que foi a "segunda parte" da sua carreira. Que ele a vai desenvolver tanto perto, como longe de Lisboa e Porto, especialmente para um lugar onde se adorava automobilismo e onde o panorama era pujante: Angola. Apesar dos guerrilheiros quererem perturbar as atividades do país, na sua luta pela independência, ali vivia-se em sossego, sem perturbações, a a sociedade vivia uma era de prosperidade. E isso reprecutia-se no automobilismo. Para terem uma ideia, era em Angola que se viam carros como o Ford GT40, o Porsche 908 e o Alfa Romeo T33, por exemplo. 

"Nicha" já tinha competido em 1961 e 1962, mas a partir de 1969 começa a correr regularmente em paragens angolanas, contra pilotos como António Peixinho, e nesse periodo, a rivalidade foi intensa, atiçada principalmente pelos concesionários de automóveis. Peixinho era representado pela Alfa Romeo, e Nicha correu ao serviço da BMW, e os seus duelos faziam vibrar aquele país africano. A "corrida às armas" - leia-se, carros - tinha começado com Emilio Marta e o seu Ford GT40, mas depois apareceram Peixinho, com o Alfa Romeo GTA e Nicha, com o BMW 2002Ti. Quando Peixinho responde com um Alfa Romeo T33, Nicha têm "carta branca" para ir diretamente à Alemanha Federal, mais concretamente à Schnitzer, para ir buscar um BMW 2800 CS. Com ela, ganhou as Seis Horas de Nova Lisboa de 1971 (atual Huambo) com um jovem piloto alemão a seu lado. O seu nome era Hans-Joachim Stuck

A luta termina em 1973 quando a organização do Autodromo de Luanda (como o Estoril, também inaugurado em 1972, como o de Benguela) decide juntar Nicha e Peixinho num Lola T2292-BMW para correrem juntos, e a parceria é um sucesso. Mas entre eles, não havia inimizade, bem pelo contrário: as corridas só serviriam para aguçar a competição entre dois pilotos com estilos de condução diferentes. Se Nicha era piloto de pista, Peixinho era um senhor mais versátil, com passagens pelos ralis, por exemplo.

Quando não está em Angola, corre em Portugal com os Sport-Protótipos. Por exemplo, corre em Vila Real com o Porsche modelo 917 verde, pertencente a David Piper, e que disse anos depois que foi o carro que lhe deu mais prazer em guiar. Mas em 1972 volta a correr internacionalmente, na Ecurie Bonnier, com os Lolas-Cosworth T290 de 3 litros. Participa nas 24 Horas de Le Mans, ao lado de Jorge de Bragaton (um principe de origem georgiana) e o belga Hugues de Fierlandt, mas o carro acaba por desistir ainda antes de Nicha fazer a sua parte em La Sarthe. A equipa anda bem, mas a sua participação termina com a morte trágica de Jo Bonnier.

E algumas semanas depois, está em Nova Lisboa, ajudando a fazer aquela que é provavelmente a mais rica e mais internacional prova de sempre do automobilismo angolano, antes ou depois da independência. Com quatro Lolas de três litros presentes, dois Porsches 908 e um Ford GT40, pelo menos, e pilotos como Gerard Larrousse, Vic Elford e Jan Balder, em termos internacionais, e nacionais como Carlos Gaspar, que começa a fazer aquilo que viria a ser depois o Team BIP, provavelmente a maior aventura portuguesa no automobilismo internacional.

A prova parecia ser para Nicha, que faz parelha com Claude Switlick, mas na quarta hora, ele têm um problema na suspensão traseira-direita e tem de ser ele a fazer a reparação, pois a organização tinha decidido proibir a assistência mecânica. Teve de ser ele a fazer as reparações, e quando as fez, estava bastante atrasado na classificação, e "voou" para fazer a volta mais rápida e a acabar no quinto lugar da geral. Contudo, tinha ganho o dia e conquistado o público.

Fora das pistas, tinha fama de "bon vivant", quer um Portugal, quer no estrangeiro. Em fevereiro de 1971, ele e mais três amigos decidiram fazer uma partida do qual conseguiu enganar... o diretor de um jornal e com ele, meio país. Na altura, surgiu o rumor de que três representantes árabes estariam em Lisboa no sentido de haver uma espécie de flexibilização em termos de abastecimento petrolifero. Ainda não havia as crises petroliferas, mas já existia a OPEP, a Organização dos Países Produtores de Petróleo, e as suas movimentações enervavam o Ocidente.

Então, o jornal "O Século" soube que esses arabes iriam jantar no Tavares, o mais luxuoso restaurante de Lisboa, e eram chefiados por um "principe Ibn Seddak". O jornal mandou um repórter e eles falaram pouco, mas o suficiente para haver foto e uma pequena noticia. Contudo... os árabes eram falsos. Na realidade era Nicha Cabral e mais alguns dos seus amigos - Michel da Costa, um famoso cozinheiro, era um deles - e quando a "peruca" foi descoberta, a risada foi geral e o embaraço ficou-se pelo jornal... e no regime de então, que chegou a mobilizar um secretário de estado para falar com os tais "árabes". Quanto a eles, não lhes aconteceu de nada, mas tiveram uma história para contar aos netos.

Mas "Nicha" têm outra história, pouco conhecida e só mais recentemente veio à superficie. Na sua juventude, teve aventuras com mulheres... e homens. Especialmente com homens. Muito estranho, especialmente no Estado Novo que tinha fama de reprimir homossexuais, considerando-os como "desviantes" e chegando a condená-los à prisão e a serem hostilizados pela sociedade. Mas como "Nicha" fazia parte da elite, neste caso concreto, à elite do Porto, esses não eram incomodados.

"Nunca senti que fosse incomodado pela policia. Eu achava que era normal o que fazia... homossexualidade, bissexualidade, nunca achei que fosse um desvio, vivi sempre num meio não homossexual. Tinha um grande amigo, o actor Paulo Renato, um homem superiormente inteligente, que pensava como eu, e que eu saiba, não se sentia perseguido", contou, em 2009, numa entrevista ao jornal "Publico".  Mais recentemente, primeiro na sua autobriografia, e depois com outro livro, "Terceiro Sexo", de 2010, Nicha contou com mais abertura sobre as suas aventuras. E confessou que sentia elogiado quando era assediado por homens... heterossexuais.

Voltando à competição, em 1972-73, ele integra o rol de pilotos do Team BIP. Essa era a sigla de "Banco Internacional Português", uma instituição que tinha tido uma ascensão forte e veloz no mundo financeiro e era comandado por Jorge de Brito, que anos depois, nos anos 90, se tornou no presidente do Benfica. Mas para além disso, era um apaixonado pelo automobilismo, e a partir de 1971, compra um modelo Lola T290 de 3 litros para competir no campeonato nacional e no Mundial de Sport Protótipos.

Começando primeiro com Carlos Gaspar, a equipa em 1973 contava com Nicha, Gaspar, Carlos Santos e Jorge Pinhol, que no ano anterior tinha competido na Formula 3 britânica. Se Pinhol e Santos significavam juventude, Gaspar e Nicha eram as vozes da experiência. Quanto aos carros, eram os Lolas que pertenciam à Ecurie Bonnier. Aliás, eles tinham decidido comprar a equipa, após a morte do seu proprietário.

Contudo, a passagem de Nicha é de curta duração. Uma bronca depois da primeira corrida do ano, os 1000 km de Monza, com o "team manager" Georges Jost, que tinha vindo da Ecurie Bonnier, faz com que ele abandone a equipa. Mas depois alinhou em Vila Real ao lado de Vic Elford, num March-BMW, mas o carro era bem mais fraco do que os Lola. no final do ano, voltou aos monolugares, correndo num March para a prova do Estoril do Europeu de Formula 2.

Em 1974, Nicha têm 40 anos e começa a planear a carreira depois da pilotagem. Pensa sériamente na ideia da Formula 1, com o apoio do Banco BIP. Chega a pensar construir um chassis na Chevron, mas entretanto, a crise do petróleo e o 25 de abril, que coloca Portugal nas nações democráticas, acaba com os planos. E em outubro desse ano, o banco é intervencionado pelo Estado português. Nicha corre até 1975, e abandona a competição.

Na última pergunta na entrevista ao jornal i sobre a sua aventura na Formula 1, "Nicha" afirma que o dinheiro, o amadorismo da coisa e a sorte (ou o azar) o impediram de ter uma melhor carreira na categoria máxima do automobilismo: "No fundo, tive sorte e azar. Não levava aquilo a sério. A Fórmula 1 não era o circo de agora e não tinha um manager. Tinha uns amigos e tal. Mas gostei da aventura. Imperdível."

Feliz Aniversário, "Nicha"!    

2 comentários:

Daniel Médici disse...

Li as duas partes da biografia quase sem respirar e posso dizer: que bom que vc aceitou o desafio! É uma história e tanto. O relato inteiro foi novidade para mim.

Unknown disse...

Bom dia ,
Sou um Primo afastado do Nicha Cabral e da sua sobrinha Cristina pelo lado da minha Mãe... tive inclusivamente o previlégio de me ter sentado no seu Porsche 917 durante o circuito de Vila-Real em..(?)1979 ? (não estou certo)e portanto de o conhecer.
Parabens pela História e pelo trabalho que li...FANTÁSTICO .
Adorei.... Bem escrito.
Cumprimentos
Francisco da Cunha Coutinho