sábado, 18 de junho de 2016

Um sábado entre a tradição e o novo-riquismo

Para o amante de automobilismo, este fim de semana vai ser fantástico. Não só vai ver mais uma edição das 24 Horas de Le Mans, como também verá a oitava prova do Mundial de Formula 1, a decorrer nas ruas de Baku, a capital do Azerbeijão, num "GP da Europa" que quem conhece bem a geografia, sabe que de europeu, tem muito pouco... mesmo que esteja a ocidente dos Montes Urais e um pouco na zona do Cáucaso.

Contudo, aquele que segue isto com mais pormenor, sabe que desde que soube da data desta corrida, tornou-se critico da sua escolha. Um grande prémio de Formula 1 na mesma data de uma das corridas mais famosas do mundo, parece ser um insulto, pois não só se divide entre ambas as corridas, como também as verá a acontecer ao mesmo tempo. O "timing" de ambas as corridas vai ser quase coincidente, apesar da diferença horária entre ambos ser de duas horas, entre Le Mans e Baku. E isso não só causa má fama à Formula 1, como também lança mais criticas sobre a figura que manda no calendário, ou seja, Bernie Ecclestone.

Quem está a seguir as últimas noticias sobre Baku, sabe que o novo circuito citadino já deu dores de cabeça aos pilotos, devido à estreiteza em alguns lados, chegando ao ponto de na citadela, a largura da pista ser inferior a sete metros, menos ainda do que o gancho do Hotel Loews, no Mónaco. Nesta noite, estava a acontecer em contra-relógio a retirada de algumas das "zebras" em curvas mais criticas, porque os carros eram quase levados a bater no muro de proteção, bem como a redesenhar a entradas das boxes, que os pilotos consideravam "demasiado estreita". 

O octogenário anão nunca gostou muito da concorrência. É conhecida a história de como acabou o Mundial de Endurance, em 1992. Alguns anos antes, em meados da década de 80, o Mundial era uma competição forte, com presenças de marcas como Jaguar, Porsche, Mazda, Nissan, Toyota, Sauber-Mercedes, entre outras. Algo que a Formula 1 lutava para ter e olha para os Grupo C com inveja, com as suas grelhas cheias. Em 1991, a FIA decidiu que os construtores de Endurance deveriam andar com motores de 3.5 litros, exatamente iguais aos da Formula 1, de uma certa forma para os atrair para lá. E resultou, tanto que em dois anos, o Mundial acabou, porque algumas dessas marcas foram para lá, esvaziando a Endurance.

Alguns anos mais tarde, quando a CART e a Indy se separaram, o rumor que se correu foi que Ecclestone falou com Tony George, então o diretor da Indianápolis Motor Speedway, incentivando a separação para conseguir melhores contratos com a CART. Algum tempo depois, em 2000, a Formula 1 correu na Speedway. Se é verdade ou não, não se sabe muito bem...

Desde há uns anos que a Endurance começou a ver um renascimento, primeiro com a chegada de algumas marcas como a Peugeot, Audi, Porsche e Toyota, algumas delas depois de passagens frustrantes pela Formula 1, mas a coincidência de datas entre ambas as provas - muitas vezes calhava no fim de semana do GP do Canadá - impedia os pilotos de Formula 1 de participarem na competição. Contudo, desde 2012-13 que as coisas começam a mudar um pouco, e isso viu-se quando em 2015, Nico Hulkenberg fez parte da tripla vitoriosa em Le Mans, sendo o primeiro piloto no ativo a ganhar em La Sarthe desde 1991, quando Johnny Herbert e Bertrand Gachot fizeram parte do Mazda vencedor.

O mais interessante é que durante esse tempo, outros pilotos de Formula 1 estiveram interessados a andar na Endurance (cujo campeonato regressou em 2014, numa parceria entre a FIA e a ACO, o Automobile Club de L'Ouest, que gere Le Mans), o mais importante deles foi o espanhol Fernando Alonso. Ele considerou seriamente a hipótese de entrar dentro de um dos Porsches 919, mas acabou por não acontecer. A marca alemã já nessa altura tinha nas suas fileiras outro ex-piloto de Formula 1, Mark Webber, que aproveitou a ocasião para sair da Red Bull, sem olhar para trás. A visão de Hulkenberg com o troféu de vencedor, no paddock da Force India, causou mais atenção daquilo que devia, para o anão, e muitos vêm a marcação deste "GP da Europa" num circuito urbano sem experiência automobilística, num petro-estado, como um insulto, do qual o grande prejudicado será o adepto comum.

Para piorar as coisas - a desfavor da Formula 1, diga-se - todos os que andam pela Endurance dizem que a atmosfera no "paddock" é bem mais descontraída do que na categoria de monolugares. Não há tanta artificialidade, e mesmo os ex-pilotos como Webber - que sendo australiano, é honesto naquilo que fala - dizem sem papas na língua que não tem saudades desses tempos. 

Pode-se dizer que esta coincidência não passa de uma manobra para avisar a concorrência de que ali, quem manda é ele. Que a Formula 1 tem de ser o centro das atenções, onde quer que esteja, e não uma corrida que acontece desde 1923 em estradas à volta de uma cidade no centro de França, e que estão abertas ao público no resto do ano. Mas parece que manda para fora a ideia de que tem mais inveja e medo do que petulância. Se quisesse, não poderia marcar nada para aquela data, mas marcou. A FIA não manda no calendário, apenas coloca o selo de aprovação aos negócios de Bernie faz com os promotores, a troco de malas cheias de dinheiro. É graças a Bernie que temos o maior calendário de sempre da Formula 1, e tem tendência para alargar em pelo menos mais uma prova, nos próximos tempos.

Pode-se também pensar que Bernie, o sempre visionário homem de negócios que moldou a Formula 1 nos últimos 45 anos, esteja a perder qualidades, com esta manobra. Na realidade, não é bem assim. Ele tem plena consciência de que após o seu desaparecimento, muito daquilo que a Formula 1 é agora se irá desmoronar, como um castelo de cartas. A enorme quantidade de traçados construídos nos últimos 15 anos, em países sem tradição, desaparecerá quando os promotores deixarem de pagar as dezenas de milhões que o anão exige. E as pessoas - construtores e pilotos - exigirão de uma certa forma o regresso à tradição, e muitos dos novos-ricos sairão de cena, porque já não querem pagar mais aquilo que exigem. E provavelmente, voltaremos a um calendário mais magro e com maior respeito às tradições. Incluindo não só uma maior abertura às redes sociais como a um regresso à televisão aberta.

Mas esse futuro possível, neste momento, é mais um desejo do que uma realidade. Por agora, dividiremos as atenções numa overdose automobilística de dois dias.

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